Texto Verdades/Britto

Texto de Fabiana Britto para o catálogo do Fórum Internacional de Dança -FID 2008. 
Verdades Inventadas
O foco ainda parece o mesmo – composição –, embora já diferenciado em seu sentido e compreensão pelo tanto que se maturou ao longo das várias experimentações para configurá-lo.
Já a busca, é sempre outra, pois vai surgindo como possibilidade de novos encaminhamentos a partir do próprio processo em curso, até firmar-se como um vetor de continuidade da configuração daquele foco.
Desde as propostas de criação coreográfica anteriores, experimentadas nos solos Ajuntamento (2003) e Confluir (2006) e no dueto Regra de Dois (2006), criado com Renata Ferreira, o sentido de composição vem sendo explorado em diferentes graus de flexibilidade da sua estrutura, num percurso de crescente flexibilização. Em Ajuntamento Thembi buscava “ajuntar” em seu corpo estruturas coreográficas fixas encomendadas a quatro diferentes coreógrafos (Dudude Hermann, Rodrigo Pederneiras, Adriana Banana e Luciana Gontijo) cujas lógicas de organização corporal e compositiva, apresentavam diferentes graus de familiaridade com seus próprios padrões de corporalidade e composição. Ali, a parceria com O Grivo, que também se ajuntou acrescentando uma trilha sonora única a todo o conjunto, já parecia evidenciar os próprios limites de assimilação das diferenças pelo corpo. Em Regra de Dois, a parceria com Renata Ferreira experimentava uma lógica compositiva mais aberta a soluções pessoais que, no entanto, respondiam a um conjunto de regras previamente estabelecido por ambas.  Em Confluir, a experiência de testar a maleabilidade de sua própria condição corporal na assimilação de estruturas coreográficas encomendadas complexificou-se pelo procedimento adotado: os dois coreógrafos convidados Rodrigo Pederneiras (Grupo Corpo) e Alejandro Ahmed (Grupo Cena 11) propunham seqüências que depois de assimiladas separadamente  sofriam interferências mútuas, gerando um material híbrido que, embora visivelmente equalizado em suas estridências diferenciadoras pela corporalidade da Thembi, e, mais uma vez, envolvido pela singularidade sonora do O Grivo, apresentava uma intrigante impressão de “descompasso” coreográfico. Como uma pista para compreensão das diferenças lógicas de composição entre os dois coreógrafos, esse descompasso talvez seja a resultante mais significativa dessa experiência – que já carregava questionamentos caros à compreensão da dança contemporânea, tais como as noções de autoria, repertório, memória e coreografia – pois evidencia uma distinção negligenciada pelos estudos e práticas coreográficas: entre passos e princípios de articulação.  
Agora, com Verdades Inventadas Thembi parece sintetizar as diferentes buscas e valer-se de suas resultantes para buscar um outro campo de ativação das mesmas forças, propondo-se ao exercício compositivo de uma estrutura ainda mais flexível:  a improvisação. Sabida que é da necessidade de parâmetros claros para manuseio do repertório em tempo real, Thembi adota a instalação interativa como recurso de geração de instabilidade com que seu corpo deverá lidar para encontrar outros padrões de articulação com a ambiência construída pela artista plástica Rivane Neuenschwander em colaboração com o duo instrumental O Grivo. A autonomia até aqui situada em cada coisa (corpo, sonoridade, movimentação, espaço) passa a referir uma capacidade de gerenciamento de regras, agora gerada e conduzida pelo sistema que se formou entre as coisas interagindo num mesmo campo. É assim que Verdades Inventadas desmente sua própria singularidade e demonstra que todas as verdades são pura composição.
Fabiana Dultra Britto
Crítica de dança, professora e coordenadora do PPG-Dança da UFBA. 
Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP)